Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrivel. Em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: a liberdade.
Era um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! mas era uma beleza que doía. O cansaço ao bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores...Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui embaixo, viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamentes deitados à sombra de uma árvore. Não precisava voar. Não havia caçadores. Não precisava buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou vôo e passou a viver a vida mansa que pedira a Desu. e assim viveu por muitos anos. Até que...Até que, num ano como os outros, chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em vôo, as memorias de alturas, aquelas granadas de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo...Até que não foi mais possivel aguentar a saudade. Resolveu voltar a ser um pato selvagem que fora. Abriu as asas, bateu-as para voar, como outrora...mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto da vida: em segurança, pretegido pelas cercas, e triste por não voar.
Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar, é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Poque é só no vazio que o vôo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Por isso trocamos o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
Os homens preferem gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas que as aprisionam.
Deus dá a nostalgia pelo vôo.
As religiões controem gaiolas.
Rubem Alves
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